terça-feira, 14 de abril de 2009

Vicente Freitas comenta Fábulas Perversas




O poeta e ficcionista Dimas Carvalho, nascido, crescido e vivido no Acaraú, lança mais um livro – Fábulas diversas, ou melhor, perversas. Um escritor que, na verdade, sabe apreender as coisas invisíveis e materializá-las em palavras, dentro das leis criativas e fora dos esquemas da lógica – e que pratica largamente o que podemos chamar de humor adstringente, restrito, antes rangente que negro, e que se situa a meio caminho entre o humano e o desumano.
Vamos entrar no túnel do tempo e visitar – Strawberry Hill, em 1750: Uma construção gótica, bizarra e anacrônica, surge ao nosso olhar surpreso e espantado. Quem é, pois, o ocupante deste estranho edifício? Um louco? Não – um homem de letras, rico e ocioso. Trata-se de Sir Horace Walpole, Conde de Oxford, que transformou sua vila num castelo feudal. Deve-se precisamente a um desses seus típicos sonhos o romance O Castelo de Otranto (1767), que povoará de pesadelos, de fantasmas e de pobres heroínas, a literatura popular e os filmes de horror da nossa era. Mas devem-se-lhe também páginas notabilíssimas, autênticas obras-primas em que o absurdo e o irracional, aprisionam e esmagam de terrores sombrios a nossa precária condição humana.
Mas o romance do “castelo” tem vida breve. Nasce com Walpole e morre com Clara Reeve. Só que o grão semeado pelo estravagante Walpole não tem tempo de estiolar. Ann Redcliffe, Gregory Lewis e o reverendo Maturin transplantam-no para um terreno muito mais fértil, onde produzirá flores duradouras – as do romance terrífico, ou, melhor,
do “romance negro”.
No entanto, o monstro mais famoso da literatura, ainda hoje muito popular, é, indubitavelmente, o Frankenstein, de Mary Godwin, segunda mulher do poeta Shelley, amiga de Byron e Milton. Frankenstein foi publicado em 1818, obtendo imediatamente rumoroso sucesso junto do público e da crítica.
Marquês de Sade (1740-1814), autor de Justina e dos Cento e vinte dias de Sodoma e Gomorra, usa os instrumentos do romance negro, vivificados pelo racionalismo anti-religioso do século XVIII, levado às suas extremas conseqüências, e entra definitivamente na cultura moderna, concorrendo para formar o clima espiritual de que nascerão o surrealismo e a literatura de hoje.
O primeiro homem de letras americano a fazer da literatura uma profissão é justamente Brockden Brown, importador do medievalesco através das obras de Ann Redcliffe, sendo ele, sem dúvida, o verdadeiro precursor direto de Edgar Poe, autor das “Histórias extraordinárias”, reconhecido hoje mundialmente, depois de ter se tornado pó do pó.
Vivendo em países distantes, provenientes de culturas diversas, o irlandês James Joice (1882-1941) e o tcheco Franz Kafka (1883-1924), apresentam, todavia, vários pontos em comum. Ambos despontam como ficcionistas durante a Primeira Guerra Mundial: Joice em 1914, com “Dublinenses”; Kafka em 1916, com a “Sentença”. Ambos abordam o tema do absurdo da condição humana, que desenvolveram ao longo de toda a sua carreira: Kafka criando parábolas sobre acontecimentos fantásticos no cotidiano de pessoas comuns; Joice retratando o mundo interior numa linguagem elaborada e rica, na qual se mesclam neologismos, expressões eruditas e palavrões. Ambos, enfim, revolucionaram o estilo narrativo, exercendo profunda influência sobre os ficcionistas que os sucederam.
A história da literatura tem mostrado que todo período literário tem suas características próprias, expressas por um conjunto de escritores que refletem em suas obras a concepção de literatura e a visão de mundo da época e da sociedade em que vivem.
Os “pós-modernos” estenderam a busca modernista às potencialidades da consciência humana e à distinção entre o indivíduo e o mundo objetivo por meio de uma subversão deliberada das convenções da ficção. Isso fez surgir uma vasta gama de técnicas, abrindo a ficção para a fantasia, a alegoria surrealista e o realismo fantástico.
Aqui no Brasil temos também ficcionistas que se aproximam desse quase “humor negro” – entre eles podemos destacar Moacyr Scliar e Dimas Carvalho – contistas que procuram apresentar os seus personagens em momentos de crise, como seres cuja essência implica a própria existência problemática. Os personagens revelam-se singulares pelo seu comportamento, num cotidiano de situações em que se misturam o real e o fantástico.
Desde sua estréia na ficção com “Itinerário do reino da barra”(1993), Dimas Carvalho estabiliza algumas características em seus contos. Uma delas é a preferência por personagens carentes de identificação – a maioria com nomes – mas, às vezes, sem traços que os individualize, assim eles representam tipos genéricos, modelos de ação e comportamento, em vez de personalidades, cuja intimidade e psicologia são vasculhadas pela pena do autor.
Entretanto, em toda sua obra, ele não divide as pessoas em boas e más. Há subdivisões no sistema, é claro, mas os reinos em que se dicotomiza não são esses. O fantástico é a grande qualidade ao longo de todos os seus contos, os personagens fictícios ou reais, as coisas, as paisagens, as idéias. É que ele tem sede jamais saciada de ternura humana, de comunicação. Daí essa fixação para certo inconsciente, na poesia das coisas e das pessoas, contraste à aspereza e a violência do mundo que o machuca, resposta sempre buscada à própria solidão.
Vamos conhecer um pouco seus personagens: Em Os gêmeos, p. 10 – Ageu e Agesilau; Anaxágoras e Anaxímenes; Araquém e Araribóia; Zózimo e Zuínglio; Zaratustra e Zoroastro, para terminar com Tomás ou Tomiah. Em O manuscrito, p. 17 – Epaminondas Pitágoras da Cunha e Eleutério. Em Odisséia de Bernardo Tracajá, p. 25 – Bernardo e Teógenes, o sobrinho. Em Branca de Neve e os sete gigantes, p. 64 – Alquitofel, Adamastor, Judicael e outros. Em Tango em Itapemba, p. 77 – D. Afonso, Lindaura, João Guilherme. Em Zé Tatu, p. 79 – velho Adonias, Severino, dona Zefinha. Em Quarentena, p. 85 – José da Silva (Zé-povinho), encontrado em todas as veredas, becos e ruas, em todas as páginas de todos os livros.
Outra característica do autor é sua preferência pelo insólito, quando narra, vez por outra, acontecimentos impossíveis – fatos, no mínimo, inusitados, mistura de normalidade e fantasia; do real e sobrenatural, maneira típica do realismo fantástico, num estilo de narrativa característico do pós-moderno.
Nascido a 28 de janeiro de 1964; aos doze anos começou a escrever poemas e contos, tendo publicado alguns no jornalzinho “Jovens que se comunicam”, mimeografado pelo Grêmio Cultural Irmã Consolação, de Acaraú, publicando também no “Semeador”, órgão da Pastoral da Juventude de Sobral, editado nas oficinas do Correio da semana. Em 1978 escreveu o conto “As minas de ferro”, um trabalho de classe, dirigido pelo professor de português Mons. José Edson Magalhães.
Licenciado em letras e com mestrado em literatura brasileira, pela Universidade Federal do Ceará, é professor de teoria da literatura, na Universidade Estadual Vale do Acaraú, UVA, em Sobral. Publicou os seguintes livros: “Poemas”, 1988; “Frauta ruda agreste avena”, 1993; “Itinerário do Reino da Barra”, 1993; “Nicodemos Araújo, poeta e historiador” (em parceria) 1995; “Mínimo plural”, 1998; “Histórias de zoologia humana”, 2000; “Fábulas perversas”, 2003, “Marquipélago”, 2004.
Dimas Carvalho, nascido, crescido e vivido em berço de tantos intelectuais ilustres, traz mais uma vez a marca de sua vocação autêntica de ficcionista, no livro que ora apresentamos ao público, e que ele intitulou Fábulas perversas. São histórias freqüentemente fantásticas que deixam sempre o saldo crítico – em nível satírico – da dolorida condição humana.

OS CONTOS DE DIMAS: A CRÍTICA DE NILTO MACIEL



Dimas Carvalho e os narradores delirantes


Nilto Maciel


Alguns críticos opõem ao que chamam de “conto tradicional” o denominado “conto moderno”. Para Assis Brasil (A Nova Literatura – III O Conto, Ed. Americana, Brasília, INL, 1973), “Só com a quebra do episódio, com a abolição – parcial ou total – do enredo, do descritivo narrativo linear, o conto foi se libertando das outras narrativas de ficção e adquirindo sua própria forma.” Na verdade, o termo literário “conto” é genérico, serve para designar todo texto literário curto que não seja poema ou crônica. Para certos escritores, até alguns tipos de poema e crônicas são postos na categoria geral denominada conto. Há, porém, textos literários curtos que somente são classificados como conto em razão dessa “noção didática” de se chamar conto todo texto de ficção curto que não seja poema ou crônica. No Ceará este tipo de conto vem sendo praticado há alguns anos, como no livro Pluralia Tantun (1972), de Gilmar de Carvalho. Mais tarde surgiu Jorge Pieiro, com seus “contemas”. Verifica-se também nos livros Itinerário do Reino da Barra (1993), Histórias de Zoologia Humana (2000) e Fábulas Perversas (2003), de Dimas Carvalho.
Em “Os Ilustres Assassinos” (quase prefácio do próprio autor) lê-se espécie de lema literário, que se repete ou se resume em “Conto curtíssimo”. O personagem é o menos importante no conto. Mais vale a história, embora nem sempre haja enredo e muito menos ação. Ou literatura não passa de pura erudição de desocupados? Leiam-se “Esboço de um relatório”, “Oráculo para principiantes”, “O prisioneiro”. Onde está o personagem? O personagem às vezes nem é personagem, isto é, o narrador é somente narrador, não chegando a personagem (“Messias, ou os filhos do limbo”). Como se fosse apenas cronista, observador, sem nenhuma vinculação com a trama, com a história. Essa “desimportância” do personagem (ser humano) pode ser vista em “Desaniversário”, onde animais e seres inanimados tomam o lugar do homem. Fábula? Sim, mas não somente por isto. Em “Odisséia de Bernardo Tracajá” não há personagens.
Muitos dos personagens de Dimas não são de carne e osso. Seriam simples imagens, representações, impressões de personagens, como em “O Toureiro”. Em outros contos, os personagens se transformam continuamente ou sofrem constantes mutações, metamorfoses. Há também personagem indefinido (“Âncora”): “Nunca se soube ao certo quem era: um conde russo, um pintor renascentista, um pirata levantino, um mágico, um cantor, um arquiteto, um vigarista qualquer.” Personagem “vindo do nada”. Narrador indefinido ou não identificado percebe-se também em “Nossa fronteira ao sul”.
Às vezes o personagem quer se conhecer, se descobrir, e se inventa. Dá-se a auto-invenção, como se o narrador-autor não tivesse domínio do personagem (“Glosa a uma história antiga”). Há ainda personagens “ocultos”, como em “O irmão do grande homem”, embora haja uma história, ação, tempo e lugar definidos. O mesmo se vê em “Chamado”. Quem chama? O personagem oculto? Outros são apenas vislumbrados, como se vistos de muito longe, quase envoltos em bruma, ou há muito tempo, como em “O Vidente”. Algumas formas verbais na narração dão idéia dessa distância do personagem aos olhos do leitor: “profetizava”, “cresceu sua fama”, “se propagou” sua alcunha, enquanto uma águia “soltava gritos”, até que “no dia seguinte” apareceu morto.
Os personagens são sempre emblemáticos ou simbólicos. Em “A Árvore” o homem só é uma árvore; o jardineiro é a rotina, vista como o mau; a mulher bela e atraente é o novo, o progresso, o bem. O protagonista de “O Profeta” é, ao mesmo tempo, humano e divino, pois os comerciantes o insultam, as crianças lhe jogam merda de cavalo, se deita na piçarra, ou seja, é visível, tem corpo, e, no entanto, “quando caminha pela superfície, torna-se invisível”. Em “O Gato” o narrador fala de todos os gatos, poeticamente, até contar uma historinha ou uma fabulazinha, com direito a “moral da história”: “tende cuidado com os gatos cor-de-rosa. De todos os tipos, é o mais perigoso. Não porque nos minta, ou nos iluda, ou nos roube o queijo. Mas pelo contrário”.
O personagem-escritor Eulálio Modesto Nicanor é, ao mesmo tempo, real e irreal. Real porque tem biografia e deixou vasta obra literária, impressa em jornais, almanaques e revistas. Irreal porque esta mesma obra desapareceu e o poeta (e sua obra) não passa de obra coletiva e anônima. Personagem e obra se confundem.
Há na obra de Dimas uma visível preocupação do narrador com a criação literária. Veja-se “O livro inexistente”, onde o personagem é um escritor que não escreve, diferente de Eulálio, que escreveu, mas a obra se perdeu. No fundo, a mesma coisa. E ainda “Aqui, do meu quarto”, no qual o narrador é um escritor (maluco), um criador de fantasias, enclausurado num quarto, preso entre quatro paredes, solitário, imune aos ruídos do mundo, fechado num casulo. Leia-se “Finnegans wake”, homenagem a Domingos Olímpio ou todo escritor relegado ao esquecimento.
As personagens de Dimas Carvalho agem em espaços ilimitados ou etéreos, quando elas mesmas nem aparecem. A casa, o curral, o bosque, as igrejas, as torres das igrejas, as torres góticas, as ruas estreitas, todos os espaços são meros nomes. Para o contista não tem nenhuma importância este ou aquele lugar. Tudo é apenas adereço. Assim, que território habitam os personagens de “Os gêmeos”? Seria o espaço bíblico, homérico, indígena, indiano? Como se todos os dramas não passassem de sonhos, alucinações, visões, delírios. Os narradores e os protagonistas são seres delirantes, quase sempre, como o de “Um Sonho”, a vagar por uma cidade coberta de névoa, entre casarões antigos, com figuras de górgonas e dragões esculpidas nas portas. Em “Os quatro dragões azuis” o espaço é apenas “aquela cidade”, cheia de “grandes estátuas”, “sentinelas taciturnas” e, logicamente, os dragões azuis.
Embora delirantes, os narradores e protagonistas de Dimas são sempre pequenos, frágeis diante da vida e da trama da narrativa. “Um militar da reserva” é um exemplo dessa fragilidade. Parece até que mais importante do que o personagem, mesmo o protagonista, é o objeto ou o mistério a envolver um e outro. Em “O manual de prestidigitação” o narrador chegou à casa de poderoso feiticeiro, o qual presenteou o visitante com um livro. O feiticeiro desaparece, porque não tem mais importância na trama. O livro assume lugar de destaque. E se mantém “fechado” (misterioso), até que um dia alguém chegue “para recebê-lo”. Em “O Herdeiro” o próprio Rei “não passa de uma peça, talvez a menos importante”.
Dimas Carvalho não raras vezes abole o uso do prisma dramático univalente ou simplesmente faz do conflito apenas um esboço, como se ação não houvesse. Em “Este lugar” a ação é tão-somente expectativa – do dia fatal – pois “nada acontece”, embora o dia da resposta se aproxime e cresçam o medo e a esperança do narrador. Essa ausência de ação – esse nada acontece – é claríssima em “Nada, sempre”. Esse não-acontecer está também em “C’est la vie”. A ausência de enredo, às vezes, leva a se pensar se o enredo é apenas um enredado de ações, como em “Os doze trabalhos de Gabriel ” e “A Coisa”.
Os mais variados recursos expressivos se mostram na linguagem de Dimas Carvalho, às vezes num mesmo conto curtíssimo, como em “A Vingança”, onde se podem ver descrição (“A casa fica num alto, batida pelos ventos.”), narração (“Meia noite quase, a voz:”), fala (“– Água, por favor.”) e desenlace (“A porta que se abre, o tiro, o galope dos cavalos.”), com a presença clara de elipses de narração, preenchidas e resumidas no título. O uso do epílogo-resumo é uma constante em Dimas, como “Último ato”. Há até um conto de um só parágrafo, sem pontos (“Recordações da cidade do sol”).
Eclético, o escritor cearense utiliza as mais diversas formas da ficção curta: da narrativa inspirada na tradição do conto linear, com enredo claro (“Grau Zero”, “Tango em Itapemba”), à fábula curta, breve, sem trama, à parábola de feição bíblica. No mais das vezes, porém, o primeiro tipo dá lugar ao segundo, este ao terceiro, na mesma “narrativa”. É o que se pode verificar em “As tartarugas”. A princípio se trata de uma narrativa linear. Logo, porém, aparece o misterioso, a quebrar a “racionalidade” do enredo, isto é, a desmontar o urdidura verificada no início da “história”.
No mais das vezes Dimas foge do realismo e se envolve nas brumas do supra-realismo, do surrealismo, (“Encantos”) ou do realismo mágico. O realismo se apresenta aqui e ali, como em “Um dia ainda serei feliz”, com uma anti-heroína urbana. Ou em “Zé tatu”, história do sertão, “Sertão” e “Meu amigo Valenciano”, com heróis sertanejos e seus misticismos. O ambiente rural ou não-urbano se mostra ainda em “História de avô”, embora o realismo se vá aos poucos desfazendo, para dar lugar ao mistério. Mas o que é real para Dimas? Em “O Peixe” o animal era reflexo de uma imagem (quadro) irreal. A ilusão da imagem reaparece em muitos outros contos, como em “Diógenes”. Ou tudo é real ou tudo é ilusório? (“A descoberta”). Em “Visões” a mesma dúvida: Quem é? O que é? E em “A dúvida”: Quem sou?
Na maioria dos contos de Dimas o ponto de vista é do narrador onisciente, algumas vezes do narrador-protagonista. Em “O Sonho” o narrador está só no mundo. Em “A estátua de bronze” o narrador se vê diante de uma estátua, que seria o segundo personagem. E é, porque, no epílogo, “começa a abrir cautelosamente os olhos impassíveis”.
O narrador às vezes é plural (“Em memória de K”). Há também contos em que o foco narrativo é múltiplo, como em “Três rezas para Fortunato”: as criaturas (personagens de uma autora) e a criadora (suposta autora). Ocorre ainda o tratamento na segunda pessoa, onde o narrador ou interlocutor da segunda pessoa não se manifesta com clareza, como se fosse apenas uma voz (a consciência?). É o caso de “O Sobrevivente”. Em “Mostrando as armas” o narrador (o falante, o escritor) se dirige a outro personagem, a quem trata por “você”, e que é simplesmente “um homem”. Essa segunda pessoa pode ser protagonista ou o símbolo do homem universal (“Instruções para o fim do mundo”). Há um conto (“O dia seguinte”) em que o narrador é o morto (o que não é novidade na literatura), invertendo-se o ponto de vista narrativo. Espécie de monólogo interior do defunto, enquanto os personagens vivos se deixavam observar por ele.
Edgar Allan Poe está muito manifesto na obra de Dimas Carvalho, sem imitação. Porque também presentes estão os narradores bíblicos (Adão e Eva, o pecado e o castigo, como em “O Manuscrito”), Homero, Ovídio (metamorfoses, “Ovídio”), Dante, Kafka (“Francisco”, “O Castelo”, “Tratado da neblina”), Borges, contos de fadas (“Branca de Neve e os sete gigantes”) e toda a melhor tradição na arte de narrar.
Em suma, a linguagem de Dimas Carvalho é trabalhada, cinzelada, apurada, como se a frase surgisse depois de horas a fio de cuidados. Não se percebe, no entanto, a frase ornamentada, cheia de floreios, atavios inúteis.


GRAU ZERO



Até hoje não sei se o que aconteceu comigo foi sonho ou realidade. Às vezes penso que devo ter perdido temporariamente a razão, que delirei e tive febre. Parece-me que passei por um período de insônias, delírios, suores frios, pés gelados, a cabeça doendo. Encontrei depois pelas gavetas algumas caixas de psicotrópicos, de dosagem elevada. No entanto, o meu médico afirmava que nunca estive tão normal quanto nesta época, pelo menos aparentemente. De modo que continuo sem saber o que pensar desses estranhos acontecimentos.


Tudo começou porque eu estava desempregado e tinha como hábito ir para a praça central da cidade. Todas as tardes ficava lá, absorto nos pensamentos mais desconexos, devaneando, enquanto a multidão fluía. Era um espetáculo ao qual eu não prestava muita atenção, mas que, inexplicavelmente, me distraía das idéias atrozes que me atormentavam. Eu me deixava ficar na praça até o sol se pôr, e às vezes só pelas oito, oito e meia da noite, é que voltava para casa. Neste trajeto eu gastava talvez uns quarenta minutos, que fazia sem pressa, porque morava só, num quarto pequeno, e sabia bastante bem que a noite seria muito longa. Geralmente eu lia até de madrugada, ou ficava assistindo televisão.


Assim corria a minha vida, sem grandes sobressaltos. Na parte da manhã, olhava os jornais, procurando emprego, ou então ia apresentar o meu currículo em firmas que estivessem possivelmente oferecendo vagas. Mas na maioria das ocasiões ficava em casa, lendo e fumando, quando o dinheiro dava para o cigarro.


Numa tarde — fazia três meses que eu estava sem trabalhar e o meu desânimo aumentava — cheguei à praça mais deprimido que de costume. Sentei-me num banco central, de onde podia contemplar a grande fonte, guarnecida de ninfas e dragões de pedra, e no centro da qual fica a coluna da hora. Estava concentrado em olhar para o jorro d’água, quando vi, do lado oposto, atravessando a rua, uma mulher de vestido preto. Imediatamente, alguma coisa nela me chamou a atenção — o modo de andar, os cabelos castanhos, o rosto singularmente expressivo, o quê, não tenho certeza. Mas — e foi isso que verdadeiramente me fascinou logo num segundo momento — havia no seu olhar um sentimento triste, como de uma nostalgia infinita, de quem se achasse perdida e não tivesse esperança de nunca mais ser encontrada. E esse olhar parecia que me chamava para si, embora, pelo que pude notar, ela sequer houvesse dado pela minha presença.
Me levantar e segui-la foi uma ação automática, que executei em estado de semi-inconsciência. Eu tinha a impressão de que acabava de me acontecer o fato mais importante de toda a minha existência; e sentia uma angústia intensa, esquisitamente misturada com uma alegria tal como eu nunca havia sentido.


A mulher caminhava rapidamente, e eu só avistava as suas costas, os reflexos dourados dos cabelos. O que eu mais queria no mundo era que ela olhasse para trás, pelo menos de relance, mas isto não acontecia. Apressei os passos, na esperança de alcançá-la, barroando nos transeuntes, e efetivamente me aproximei bastante, até a distância de um braço. Mas então, quando podia tocá-la, deixei-me ficar estupidamente parado, como se uma força invisível me acorrentasse ao solo. E com lágrimas nos olhos a vi desaparecer, irremediavelmente desaparecer.
Depois disto, em que estado de ânimo passei as 24 horas seguintes! Algo me dizia que a viria novamente no dia seguinte, no mesmo local e no mesmo horário. Imaginem então a noite que passei, rolando na cama, e as vezes que consultei o relógio, tentando inutilmente apressar o tempo, que, pelo contrário, se arrastava com uma lentidão de lesma. Quando o sol apareceu, não consegui me conter, e, trocando de roupa, me encaminhei para a praça, sofregamente, sem sequer me preocupar em quebrar o jejum. E durante toda esta manhã, que durou séculos, caminhei centenas de vezes, talvez milhares, em torno da praça e pelas ruas adjacentes.
Veio a tarde, e a mulher não apareceu. Desesperado, eu rilhava os dentes, mordia as unhas, e as horas passavam indiferentes, como ondas regulares de um mar tenebroso, mar de piche, lodo e lama no qual eu afundava. Às 11 da noite, perdendo definitivamente as esperanças de um encontro improvável, e após ter esquadrinhado os recantos da praça pela milésima vez, retornei para casa, trôpego e faminto. Lembro-me que soluçava, ao me aproximar do quartinho. E quando fechei a porta, louco de dor, rolei pelo chão, balbuciando obscenidades, pragas e maldições. Chorei então até desmaiar, já de madrugada, exausto de cansaço e de fome, pois nada havia comido durante todo o dia.


E assim transcorreram três dias, em que vivi como um sonâmbulo, o mundo ao redor transformado em uma massa de névoa, espessa e sem sentido. Em várias ocasiões, ao deixar a praça, onde passava agora todo o tempo, me dirigia ao porto; de cima do cais ficava vendo o mar, lá embaixo, brigando com os rochedos pontiagudos. Eu segurava no corrimão de ferro, que contorna os trapiches, e o vaivém das águas me hipnotizava, como se fosse um chamado, uma cantilena monótona e maviosa que me puxasse para dentro do abismo. E entre as espumas, trêmula, eu tinha a ilusão de avistar, submersa, a imagem mais que todas querida.
Ao cabo de três dias, a mulher apareceu novamente. Trajava um vestido azul claro, de alças, mostrando os ombros de puro mármore. Desta feita, ela me olhou por um instante, com seus olhos de mares longínquos, e houve neste relâmpago como que uma mensagem de reconhecimento, como se fôssemos companheiros de uma mesma jornada começada há muito tempo atrás, companheiros que conviveram por longos anos, e que um acaso ou um infortúnio houvesse separado. A sua boca se entreabria, para saudar o reencontro, mas foi outra coisa que ouvi, com nitidez, apesar de trinta metros mediarem entre nós dois:
— Não se aproxime de mim, será a sua perdição.
Estupefato com o que acabava de escutar, deixei-me ficar, atônito, enquanto ela desaparecia de novo no turbilhão incessante. E a partir desta data, infalivelmente, todos os dias eu conseguia vê-la, embora de modo rápido. Embora fossem baldadas todos as maneiras que imaginei para acompanhá-la, falar com ela, beijar-lhe as mãos e os olhos, ajoelhar-me aos seus pés e lhe oferecer o punhal com que ela me trespassaria o peito.
Durante esta fase — que se estendeu por 21 dias precisamente — forjei toda espécie de truques para obter seu endereço. Em meus delírios, elaborei os estratagemas mais complexos e absurdos; e em minha mente se sucediam, alternadamente e numa velocidade estonteante, a exaltação e o desânimo, a certeza mais absoluta e o desengano mais amargo. De sua visão fugaz, que sumia como um fantasma, era que eu me alimentava, e onde ia buscar forças para continuar, paradoxalmente, vivo. E somente desta fantasia feroz e febril eu tirava o meu sustento.
Passaram-se três semanas, e eu a via diariamente, mas se fosse feita a soma dos minutos, creio que estes não chegariam a dez. Dez? Talvez cinco. De qualquer forma, esta situação era menos pior do que a que veio a seguir: ela sumiu para não mais voltar.


Desde então, muitos anos se passaram. Consegui um lugar no funcionalismo público, que me garante a sobrevivência. Casei, tenho dois filhos. Minha mulher não é mais nem menos — uma pessoa mediana, normal como tantas outras. Não vou contar dos primeiros meses que se seguiram ao desaparecimento daquela que foi a luz da minha vida. Evitava passar pela praça central, pelas ruas que pudessem recordar de algum modo a sua lembrança. E tudo transcorria assim, em cores cinzas, nem menos nem mais, os anos se sucedendo em sua cantiga repetida. Até que, há uma semana, o telefone toca, sempre à mesma hora, e, quando eu atendo, um longo silêncio se segue, pontuado por uma respiração quase inaudível. E eu também nada digo, deixo-me ficar mudo, porque sei muito bem o que me espera do outro lado. As palavras que não digo, e também as que não ouço, ressoam, claras e inequívocas, na minha cabeça. Alguém, de muito longe, chama por mim.


E sei o que inevitavelmente virá: suores, delírios, insônia, pés gelados. O meu médico continua afirmando que não tenho doença alguma, e que aliás nunca tive. Sei também para onde os meus passos me arrastam, contra a vontade: para o porto, para o mar, para os recifes pontiagudos, porque entre as espumas e as ondas ela me espera, e com ela deverei, mais cedo ou mais tarde, finalmente me encontrar.
(Conto de Dimas Carvalho)

MANUSCRITO





Epaminondas Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos, decrépitos e decadentes.


Os dias se passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado, dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal caído entre as pernas, a boca aberta, babando.


Além dos dois andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia, quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A poeira fazia com que espirasse. Alguns livros estavam roídos pelas traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto em Português, que parecia servir de intróito, dizia ser a língua o sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.


Epaminondas era um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado a aprender o sumério, custasse o que custasse.
A partir deste dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso. Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único. Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres mágicos que o enfeitiçavam.


Foram anos a fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande porta que guardava o Mistério.


Foi por esse tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas, herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas, enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar, sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.
Encaminhou-se a uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná. Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia nascesse.
Ao voltar para casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado, oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando, trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:
— Caríssimo Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios. Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.


Então Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre, atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua arcaica e quase que completamente esquecida.

(Conto de Dimas Carvalho)


Aqui, do meu quarto






Moramos todos nós nesta casa, cada um no seu quarto, a família toda. Não sei precisamente quantos somos, porque nunca nos vemos; na verdade, nenhum de nós sai de seus aposentos. A comida é entregue no quarto no momento em que o lixo diário é recolhido. Também não se vê quem entrega a comida e recolhe o lixo. Mas, embora passando os dias trancado aqui, viajo pelo mundo todo. Ultimamente estive em Camberra, depois passei pelo Texas, Espanha, a Patagônia e a Cidade do Cairo.


Um dos meus passeios favoritos é à Escandinávia. Adoro as paisagens geladas, os meses sem sol. Lá, cavalgo os grandes rinocerontes rosados, passeio pelos imensos túneis do metrô secreto que liga o Pólo Norte a Londres e Nova Iorque. Quando baixam os discos-voadores, sou o primeiro a recepcioná-los. Algumas vezes viajo de submarino. Desço a profundidades abissais, sete, oito mil metros, e lá converso longamente com polvos gigantescos, peixes cegos, corais borbulhantes, vulcões e harpias. Os seres das profundezas possuem um admirável senso de humor, e é um espetáculo edificante ver como eles praticam um canibalismo filosófico e estóico, do qual não estão ausentes o suicídio e as torturas mais sutis e pavorosas. Delicio-me com a delicadeza dos seus poetas, pintores e artesãos, sem dúvida alguma os melhores do globo, injustamente condenados, pela imensidão das águas oceânicas, a um ostracismo e a um desconhecimento por parte do público que só podemos classificar como absolutamente deploráveis.


Também costumo navegar para outras galáxias, embora na maioria dos casos, por pura preguiça, não ultrapasse as fronteiras do sistema solar. Gosto de passear principalmente nos anéis de Saturno e no nebuloso Netuno, planeta da minha predileção, pois lá não se encontram cobradores, parentes e cantores de rap, não necessariamente nesta ordem. E como é bom cavalgar os hipocampos de Júpiter, deslizando pelas paisagens veludosas que se estendem por milhares de quilômetros. Isso sem falar nos mergulhos entre as nuvens de Vênus, que rendem horas de êxtase contínuo, esqui privilegiado de prazeres conspícuos.


Voltando a minha casa, descanso por semanas ou meses seguidos. Hiberno. Escrevo longas cartas sem destinatários, ao mesmo tempo em que recebo correspondência de pessoas que vivem no futuro e que se comunicam comigo usando não sei que espécie de artifícios. Promovo grandes banquetes, e alguns dos meus convivas mais freqüentes são Napoleão Bonaparte e Leonardo da Vinci. Aristóteles aparece de vez em quando, apesar de estar ultimamente muito ocupado, escrevendo um tratado sobre as moscas azuis da Mandchúria. Mas tenho o maior cuidado de não convidar para a mesma festa Joana D’Arc e Alexandre II, pois eles simplesmente se detestam, e já tive muito trabalho em uma ocasião em que o serviço de cerimonial falhou, havendo um desagradabilíssimo encontro dos dois. Afora isso, os banquetes são um verdadeiro sucesso, e até inimigos figadais, Churchill e Hitler, por exemplo, se comportam exemplarmente, mesmo quando por acaso sentam lado a lado. Só não consegui ainda entender é como cabem neste pequeno cubículo em que vegeto 200, 300, 500 pessoas, sem contar os músicos e os garçons, que, como todos sabem, são duas espécies animais bastante agitadas, e que por este motivo ocupam um espaço desproporcional às suas funções e utilidades.


Outro dia, resolvi testar as minhas capacidades. Comecei por comer: ingeri 200 litros de gasolina, oito tortas, três queijos médios, seis pizzas-família, dez quilos de cavala, doze quilos de capim-mimoso. Depois corri setecentas léguas sem parar, tocando um trumpete que ganhei no último Natal, presente de um urso panda amigo meu que mora na Criméia. Não contente, nadei durante 50 dias, sem comer nem beber, fazendo a circunavegação da África quatro vezes, e ainda falam que Vasco da Gama é o tal. Para encerrar este meu período de férias atlético-olímpicas, encerrei-me no túmulo de Nabucodonosor, onde vivi por oitocentos dias alimentando-me com hidromel, formigas e gafanhotos que me eram trazidos por carruagens de fogo puxadas por dragões alados. Só saí de lá quando a grande águia rodou sobre mim por setenta vezes, e todos os leões da Báctria começaram a urrar em uníssono. Feito isso, arranquei as montanhas do Cáucaso para fazer com elas a casa de morada do meu coelho de estimação, que reside na hospitaleira cidade de Jamestown, para onde enviei, via telex, todos os utensílios necessários à sua boa acomodação.
Agora estou ouvindo barulho nos outros quartos. De cada lado vem um som diferente: são fanfarras, músicas sacras, tinir de metais, descargas de banheiros, trombetas, cristais que se partem, buzinas, silvos de trens, roncos de avião, sinfonias fragmentadas, grunhir de porcos, patadas, coices, miados, uivos, choques de caminhões em alta velocidade, ambulâncias, explosões nucleares, trinados de pássaros, alto-falantes, zumbido de insetos, troar de canhões, gritos, ruídos de portas e janelas que se fecham com violência, pneus que freiam, apitos, fragor de ondas, chuva caindo, relâmpagos e trovões. Em cada quarto desta maldita casa acontecem mil coisas diferentes a cada momento, e em cada um deles, eu sei, há um maluco escrevendo suas fantasias mais delirantes, e, o que é bem pior, o relato de coisas verdadeiras que vemos, ouvimos e sabemos e que, se as ousássemos contar, seriam tachadas de fantasias e mentiras desvairadas. Mas será que eles todos são realmente e totalmente malucos?

(Dimas Carvalho)